Era uma vez uma menina numa aldeia do Alentejo

Era uma vez uma menina que chegou a uma aldeia perdida no Alentejo, aquele que nem é alto nem é baixo, trazida pela mãe. Como era ainda muito pequenina - tão pequenina que a ela se deve o nome deste blogue -, a menina não tinha forma de saber ou compreender o que estava a acontecer, mas a mãe fugia. Fugiam, por isso, as duas.

De quê? Talvez ainda hoje, dois anos passados sobre o indizível, não seja o momento ou o lugar de explicar as razões de tal precisão. Posso apenas generalizar, apontar a dor como responsável pela fuga. Como se isso fosse possível, fugir da dor. Fugia dos estilhaços das traições que lhe arranhavam a alma. De tal  as coisas, a vida não podia continuar igual, como se nada fosse. Mas esta história não é sobre isso. Talvez outra, mas decididamente não esta. 

Esta história vem contar o que aconteceu na vida da mãe e, sobretudo, daquela menina a partir daquele dia de verão do ano de sua graça de 2023, demasiado quente para o que estavam habituadas. Continuemos, portanto. Num qualquer segundo daquele final de julho, as duas chegaram a uma aldeia perdida do mundo, tal qual a aldeia onde a mãe crescera e se fizera gente. A diferença é que a nova morada era abraçada por água por quase todos os lados. De tal forma que a menina chamava àquele lago misterioso mar, o mar que conhecia desde sempre. 

As duas chegaram ao povoado de casas térreas, quase todas brancas, sem nada, vindas da cidade grande. Não que a cidade fosse tão grande assim - era apenas a maior do pequeno país onde a menina e a mãe tinham nascido, num retângulo da Península Ibérica

Ah: É importante dizer que estas duas almas, uma ignorante do passado, a outra do futuro, não vinham sozinhas. Acompanhava-as um cão grande, preto, raiado de amarelo, e já algum branco, a denunciar a idade, a sua velhice. Era bem mais velho que a menina, em anos de gente e de cão. Chamava-se Tango

Voltemos à nossa história, que parece duvidosa de se contar, tantas as sombras e véus que a envolvem. Sem preparo para aquele novo e estranho mundo, onde eram elas, menina e mãe, as estranhas,  começaram a instalar-se na casa nova, emprestada por uma amiga da mãe, que sabia muito de fugas e decidira ajudá-las na sua. 

Instalada na rua principal da aldeia, a casa nova, ou casa da mãe, como a menina chamava à ruína que passaram então a habitar, resumia-se a pouco mais de paredes. Não tinha banho quente, nem cozinha, ou comodidades como máquina de lavar roupa. Ou portas de verdade, sequer. 


A casa permanecia perdida, encravada entre mundos, o velho, desaparecido, do antigo dono, e o novo, o da nova proprietária e das suas hóspedes. Entreaberta. Estranha, como tudo naqueles meses. Mantinha-se sem proteção do mundo lá fora, real ou imaginária. 

A mãe, como fazem as mães, não queria que a menina soubesse disto. Desejava antes, que acreditasse que a porta servia para lhe guardar bem, completamente, os sonhos e a inocência. Por isso, aquela mãe, que em poucos dias envelhecera muitos anos, inventava histórias para adormecer. Dava-lhe giz para desenhar. Criava um mundo, também ele estranho, protegido da realidade. Com dança e música, que cantavam as duas à noite. Mostrava-lhe a rola que todas as manhãs cantava numa árvore próxima. As aranhas do quintal. As ovelhas. As cabrinhas. Os ninhos de cegonhas. A água, o cheiro da terra molhada do final do verão.  

Nas ruas, tamanha a sua tristeza, a início, a mãe só levantava os olhos para o céu para falar das árvores e dos bichos à menina, que até então desconhecia. A assim passaram os meses, cheios de dias demasiado quentes e demasiado grandes, daqueles em que o tempo parece esticar ao infinito. 

Aos poucos, a mãe começou a falar à menina na nova escolinha, onde iria conhecer novos meninos, fazer novos amigos. E tamanha a surpresa: a menina apaixonou-se por aquele lugar de mistério, aventuras e docura desde o primeiro dia. 

Ao contrário do que tinha acontecido até então, todos os dias pedia à mãe para ir para a escola, brincar com os amigos. Mas essa é matéria para outra história. Noutro dia. 



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