Morada: Oriola, Évora. Afinal, o quintal do meu pai

Tenho andado às voltas com este capítulo das nossas vidas. Como descrever este lugar que agora habitamos, a nossa nova aldeia-casa-lar? 

Chama-se Oriola. Com a vizinha São Bartolomeu do Outeiro, é uma pequena freguesia do concelho de Portel, distrito de Évora. Talvez por ser banhada pelas águas do Alvito, Ribeira de Oriola ocupada, enche - como quem diz, é afinal de uma aldeia alentejana que falamos -, sobretudo no verão e nas épocas festivas, de turistas e emigrantes saudosos de casa. Depois, há os de cá. Os que vêm e ficam. Como nós.

Têm-me perguntado o que nos trouxe. Bem, para mim, morar em Oriola é uma espécie de regresso. E talvez este texto seja, afinal, apenas uma justificação pessoal para mais uma mudança total de rumo na vida, além da óbvia: tinha de o fazer, a Ema não podia crescer em aquários. Mas mesmo assim. 
Talvez precise de mais auto-explicações para, naquela noite, ter aceitado o convite generoso da minha Patrícia (ela sabe argumentar) para deixar ir Lisboa, a Lisboa que tanto me cansou e gastou, mas que tanto me deu também. Sobretudo pessoas. A Lisboa da movida. Das possibilidades. Das escolhas. Do anonimato, do bulício. do acesso. E da falta de condições. A Lisboa que ainda me falta. A Lisboa da minha Gabriela.

Vim para a aldeia num daqueles momentos em que a vida nos testa, nos obriga a agir, a escolher. E escolhi.

Tenho todas as histórias para descobrir nesta aldeia, a freguesia onde votei pela primeira vez E ainda nem comecei, apesar de terem já decorrido oito meses desde a nossa chegada.

Bem. Por mais voltas que lhes dêem, todas as histórias têm de ter um qualquer início quando decidem ser contadas, por isso, cá vai: Oriola é uma tentativa de refazer do coração, como o que ocupa o segundo o no nome da aldeia, em frente à igreja gigante onde nunca entrei. 

É também uma espécie de busca. De tentar o absurdo: voltar ao quintal do meu pai. Com toda a luz e sombra desse regresso. Aos anos do quintal do meu pai. Outro Alentejo, outros 500. Uma tentativa de voltar àquele quintal que desapareceu com ele. Extinto do mapa, da Terra, no exato momento em que os olhos azuis do meu pai se fecharam pela última vez. 

O mesmo quintal daquela despedida maldita numa noite de janeiro, em que o homem bonacheirão com quem tanto lutei, que amei mais que a qualquer outro, o homem a quem herdei a cisma, se despediu de mim com mais um 'vai com deus' e uma benção, junto ao portão de ferro cuja cor já nem recordo. Só porque se tornou o lugar da tristeza infinita, da dor, em que o meu pai, que tanto quis proteger, me escondeu, de novo, a verdadeira dimensão do seu mal estar e da sua dor. 

Sei porque o fez, vejo-o agora. Foi como sempre tinha sido, afinal. Para tentar proteger-me de algo que não tinha nem o direito nem a capacidade para fazer. Mas um pai fica preocupado, como ele dizia tantas vezes. 

Naquele dia, foi só pior. Significou ele morrer-me sem me deixar despedir, sem me dar uma hipótese. E, por causa disso, nunca mais pude sentir-lhe o cheiro, nunca mais o abraço. Nem se repetiram as conversas sobre a minha mãe. 

Foi-me embora, sem nos curarmos daquele telefonema num dia de fevereiro. Lembro-me da confusão indiferente da rua à volta, no Chiado. Caminhava para tentar processar uma morte anunciada, e ele telefonou, só para suspirar, constatar, coração partido com coração partido, a tentar remendar-nos um ao outro: 'pronto, já acabou', quando o corpo da minha mãe, da nossa Maria, decidiu a sua hora. Depois, depois ele foi também. Sem me preparar para nunca mais o ter à minha espera na rodoviária de Estremoz, nem ir-me buscar à praia de Fronteira nas férias grandes, com a sua amada Gabi, nem ligar-me para saber dela ou do nosso mundo tão distante, nem entristecer-se sempre com as minhas partidas, nem tanta coisa só nossa, porque é assim entre pais e filhos mas, sobretudo, é assim entre pessoas que se amam desde que se conhecem.

O meu pai deu-me o nome. Foi ele quem escolheu Sónia, em honra de uma jovenzinha brasileira do seu passado longínquo. Como, no depois, foi só nosso o desentendimento e o entendimento, o adeus. A horrível, por definitiva, partida. 

Não sei ainda responder o que vim procurar a Oriola, a aldeia da minha amiga-irmã Patrícia. Este lugar que, de uma forma misteriosa, sempre me acolheu e nutriu. Onde encontrei sempre pessoas bonitas, de todas as formas. 

Oriola. O sítio onde a Ema tem um recreio no jardim de infância parecido ao da minha escola amarela de pequenina na Foz. Onde brinca na terra com pás e chega a casa toda suja. A aldeia onde a minha filha (ou)viu um sino verdadeiro a tocar e onde aprendeu a reconhecer o canto às rolas, a algaraviada dos pardais, o que é uma cabra bebé (é um cabrito, agora também me lembro); ou um cordeiro.

Porém, a bem da verdade, toda esta descrição, na descoberta fascinante que cabe em três anos de vida, os da Ema, parece pouco. E já tão longínqua. Aquém de Oriola, do fim do mundo, como já ouvi apelidar esta terra criada pela mineração do ouro que por aqui abundou noutros séculos.

Posso falar da grandeza de tudo. É Alentejo, afinal. Do silêncio, tantas vezes perturbador. Ou do tempo, um tempo diferente, que parece mais longo, até desaparecer. E posso descrever os chocalhos que ouvimos em casa quando chega a tardinha mas também durante o dia inteiro, enquanto lutamos com a internet - e bastante - para trabalhar ou apenas para comunicar com o mundo 'lá fora'. Porque há um mundo lá fora. Onde existe essa rede global que se tornou um bem essencial do século XXI. Dos anos 20 do século XXI. E depois, há o mundo cá dentro, neste Portugal profundo, a anos luz de distância dos centros urbanos, desconhecido mesmo por pessoas de Évora, a capital de distrito a que pertencemos. 

Este lugar em que a rede global é feita de uma vizinha nos guardar a casa quando nos esquecemos da porta aberta. Ou do vizinho Zé para onde a Ema corre todas as tardes a pedir um chocolate, e da simpatia de o ouvir, a ele e à dona Maria da Luz, chamar-lhe vizinha. Ou dos encontros matinais no café.

Posso também nomear as árvores a mudar durante as estações que, de manhã, no caminho para o jardim de infância, acendem os olhos da Ema de curiosidade. Das teias de aranha que, quando chove, ou apenas denunciadas pela humidade ainda não espantada da noite, nos lembram da magia que era acordar em pequeninos, quando o mundo só tinha alegria e aventuras a descobrir. 

Oriola é lugar de contemplação. É mesmo. Repito: É Alentejo profundo, interior, mesmo se está situada neste Portugal tão pequenino que sabemos ser quase ridículo falar-se em interioridade. Mas ela existe, sobretudo no coração das pessoas.
 
Alguém me disse há uns dias: podes tirar a rapariga da aldeia, mas não a aldeia da rapariga. E é mais ou menos verdade. Sei-o porque tenho a minha própria aldeia dentro. E por vezes aprisiona-me de uma forma insustentável. Confirmo: é impossível tirar a aldeia da rapariga. 

Voltemos a Oriola. É cedo para a descrever, esta terra com um nome que a maioria das pessoas da minha vida anterior tem dificuldade em perceber, quanto mais em localizar. Fica a quase duas horas de Lisboa, pouco menos de 200 quilómetros. É difícil descrevê-la, assim, com poucas palavras apenas porque tudo o que é misterioso é difícil, demorado. 

Oriola, com a sua planura, as ruas diteitas e muitas vezes desertas a fazer-nos querer gritar para o vazio, com os sorrisos ou ares taciturnos dos habitantes que, com o correr dos dias, começamos a reconhecer. As suas dores, as perdas, as alegrias, as desconfianças, a abertura, o querer e o não poder, o poder e não querer, a dureza do tempo, a beleza incrível de tudo. 

O lugar onde a minha filha pequenina não tem internet com fibra. Nem tablet ou televisão - ouve música no Youtube, dança e aprende inglês com o T-Rex. E brinca na terra e tem uma horta na escola. 

Muito, muito mais importante, esta é a aldeia onde a Ema é reconhecida e acarinhada todos os dias. Onde tem nome entre as poucas crianças das redondezas e as conhece a todas e onde eu sou, orgulhosamente, conhecida como a mãe da Ema. Oriola é também o lugar onde o carnaval dura três dias com desfiles na rua, e esses três dias durarão uma vida inteira nos olhos dela. Como as águas que todos os dias teima em chamar de mar e que são a natureza mais bela, mais sublime do universo.

Oriola é um lugar que sempre me nutriu. E está a fazê-lo outra vez. É a nossa nova morada.



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