Tempo ao tempo
O tempo, esse desconhecido. Tantas vezes o mais temido mestre. Pensei, tive a arrogante ilusão, de estar a escrever este blogue para a Ema, para ela saber de onde vem - apenas pela estranha coincidência de, como eu, ela ser filha da maturidade, vinda depois dos 40. Como eu cheguei aos meus pais. As duas pessoas que me geraram e perdi demasiado cedo, sem tempo de preparar-me, sem tempo para dizer e ouvir tudo o que precisava. Sem tempo para despedir-me. Para perdoar e ser perdoada.
Aconteceu tudo demasiado cedo. Para mim, pelo menos. Como se houvesse uma hora certa para perder alguém. Sim, a vida não tem esse sentido. Às vezes, parece não ter nenhum. Sete anos passados sobre a morte do meu pai, nove anos sobre a da perda da minha mãe, tenho muito mais noção das incongruências disto de estar vivo e da, pelo menos aparente, falta de sentido de tudo.
Com o tempo, acabei por perceber também que, afinal, ao contrário da minha pretenção inicial, estes textos não são para a ainda pequena Ema. (Eu não sou pequena!, interviria ela, muito decidida, se soubesse o que aqui escrevo, do alto dos seus quatro anos.) Pelo menos, não os escrevo apenas para ela.
Antes de tudo, estas palavras são para mim. Talvez para o meu futuro eu, quem sabe? Preciso de escrever. Como se temesse perder a vida, a realidade mágica de tudo, se não o fizer - quero dizer, a memória. Não saberia viver sem escrever, muito menos sem ler.
Não concebo uma existência sem isso, mesmo nestes tempos estranhos em que o ditado que diz que uma imagem vale mais que mil palavras parece mais verdadeiro que nunca. Tempos em que vivemos colados a aparências aparentemente perfeitas, aparentemente verdadeiras... Aparentemente honestas. Estou a perder-me no texto, bem sei. Falava do tempo. Do senhor tempo que tantas vezes me pareceu errado, errático.
Cresci com a crença e, de alguma forma, também o estigma, de ter nascido demasiado tarde, tanto para a minha mãe como para o meu pai. Parece, contou-mo ela, que a gravidez de mim foi tão estranha e inesperada, vá, que a escondeu do resto da família até aos seis meses.
Ao contrários dos dias de hoje, naquela altura as mulheres eram mães jovens, ao contrário do que aconteceu com a minha. E não apenas de mim. Teve o primeiro filho aos 26, um ano depois de casar com o meu com quem se correspondeu durante o tempo em que ele esteve na guerra, no Ultramar.
Passaram anos mas, como me disse no outro dia um psicólogo especialista em trauma e luto, a perda de um pai ou de um filho não tem tempo. Perdura. Sem datas. Como o amor afinal. Como a ligação. Em toda a sua complexidade, é uma perda tão... avassaladora, que atravessa toda a vida de um ser humano. Transforma-o. Pode ajudá-lo a crescer. Porque o coração, esse órgão tão famoso e único no nosso corpo, contorce-se com milhões de sentimentos e emoções difíceis de domar. E pensamentos, do que se fez e do que se poderia fazer.
Escrevo isto não porque ainda chore a morte dos meus pais. Encontro finalmente um sentido em tudo - mesmo nas suas mortes. E paz.
Faz parte da vida a morte. É universal e equitativa, ao menos ela. Todos passamos por isso, sem excepção. E somos obrigados a mudar durante a vida. A olhar para dentro, mais cedo ou mais tarde. Mesmo se nos recusarmos a sentir, mesmo procurando adormecer a dor.


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