27 de Julho 2021

Lisboa, em casa Cumprem-se hoje 82 anos desde que entraste neste mundo. 82. Provavelmente, viste a luz e rosto da avó pela primeira vez em casa, naquela casa humilde da rua de que não me lembro o nome em Santo Amaro. Curiosa, sem saber o que a vida te traria. Chamaram-te Maria Rosalina, um trocadilho com o nome da tua mãe, Rosalina Maria. Não sei porquê. Talvez fosse assim simplesmente. Nem sempre é preciso motivo para as coisas, como tu dizias: “Porque sim”. Era 1939 e o mundo estava em guerra, a sua segunda guerra mundial. Só o nome assusta. 

E aprendemo-la na escola, anos a fio, ainda pequenos. Muitas vezes sem saber associar a história à realidade, a algo que aconteceu mesmo. Porque não temos maturidade para perceber a gravidade das coisas, das vidas que se perderam, da dor, das atrocidades cometidas. Dos motivos porque se luta. Mas em Santo Amaro tudo era longínquo, distante. Ainda bem para a menina que eras, no meio de todos os teus irmãos. Também aprendeste coisas na escola primária. Lembro-me de me contares isso: que aprendeste o nome dos rios e das estradas, dos montes e das montanhas, das cidades e muito mais. De cá e do ultramar. De países onde nunca foste, mas que os adultos, os que mandavam, diziam ser nossos. Fazer parte do nosso país. Porque os portugueses os tinham descoberto e conquistado, como se esse absurdo de arrogância fosse possível. E no império e na guerra que aconteceria muitos anos mais tarde, já andavas tu na casa dos 20, cometeram-se outras, tantas mas tantas atrocidades. Porque Salazar dizia que Angola, Moçambique, Cabo Verde e outros que tantos eram dos portugueses. E decidiu enviar os jovens, os filhos da pátria, para garantir que continuavam dos portugueses. Isto porque esses países reclamavam a independência. Claro. Para lá foram muitos conhecidos teus, pessoas que amavas. Os teus irmãos, o meu pai, e outros que eu não conheço mas tu conhecias. Para defender a pátria. Tu eras mulher e o papel de uma mulher era ficar em casa, aprender a ser dona de casa. A não sonhar a não ser com o casamento e com os filhos. A resignar-se. A aceitar. A obedecer, a cumprir bem essas tarefas. Nesses anos de guerra, foste madrinha. Tenho as cartas. Tenho muitas, pelo menos. Sei também que a família era tudo para ti. Mas estou a adiantar-me na história. Antes, ainda foste ceifeira. E é essa foice o símbolo da luta comunista no Alentejo. Um dos símbolos de que o partido se apropriou. É normal. Mas tu eras a ceifeira, uma de muitas porque o importante era levar dinheiro para casa, para a família. Para entregar ao teu pai. Acabaste a quarta-classe com 14 anos e distinção. Foi toda a instrução académica que recebeste. Por falta de oportunidade, de apoio, de ajuda. Que estou para aqui a dizer? Por falta de conhecimento e de dinheiro. É verdade, eu não estava lá. Só posso adivinhar. 

Contaste-me tantas vezes as histórias e eu devo ter ouvido metade, na minha juventude e ignorância. «Era sempre a trabalhar». Tenho um vídeo teu a contar. Ganhavas oito escudos. E o que fazias ao dinheiro? «Entregava-o ao meu pai».

(... a continuar)

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