Nascer é difícil
O grande acontecimento de 2020 ficou marcado para dia 2 de
Outubro. Mas a maioria das coisas da vida não acontece por marcação.
Chegámos cedo ao hospital, felizes e bem-dispostos. É claro
que levaria epidural e tudo aconteceria de forma tranquila e rápida. De novo, a
vida não é assim.
Não encontrámos simpatia nas enfermeiras, que não se deixaram
contagiar pela nossa alegria. Primeira desilusão. Fui ligada ao CTG para
avaliar o bem-estar do bebé durante todo o processo. Nova desilusão. Apesar de existir
uma bola de pilates no quarto, não era possível sentar-me nela, ou caminhar porque
o wi fi do CTG não funcionava. Tinha de ficar deitada. Levantei-me uma vez e de
imediato entrou uma enfermeira para ralhar porque os movimentos da bebé quase
tinham desparecido do aparelho.
Enquanto tudo isto acontecia, sentia uma fome dos diabos que cada vez aumentava mais. E via o Rui comer com prazer o que lhe serviam. Quem me conhece, sabe como lido mal com a fome.
O médico chegou a meio da tarde para rebentar-me as águas. E com isso vieram as primeiras dores. O Rui adivinhava-as ao olhar para o ecrã, que apontava a intensidade que eu exprimia com caretas e queixume. O processo repetia-se: tocávamos a campainha, muito tempo depois, parecia uma eternidade, vinha uma auxiliar, que dizia ir chamar alguém. Vinha a enfermeira que, de novo, de ausentava para ir buscar nova dose de epidural.A tarde avançou devagar e com ela veio o cansaço. O médico
estranhou o facto de não haver novidades. Mas, segundo o CTG, o bebé estava
bem, íamos esperar. Chegou o final de tarde e nada. Veio a noite e com ela a
angústia. “O bebé já não está bem. O líquido amniótico tem mecónio, as
primeiras fezes, e o bebé já não está a gostar”. O CTG continuava bom, iamos
esperar. Chorei. Desesperei e muito. Vieram consolar-me.
Com a entrada da noite veio o sono e foi o sono que nos salvou.
Porque ao adormecer, deixei cair a mão e com ela caiu o cateter. Acontecera o
impensável: o cateter não estava colocado. Ninguém percebera porque estava escondido com um penso. O médico alarmou-se, chamou nova
enfermeira, ralhou. O cateter devia conduzir para o meu corpo a oxitocina,
necessária para o nascimento, e o soro, necessário para alimentar-nos. A fome
tinha um motivo. Incrivelmente, o facto de o trabalho de parto ter parado
também.
Fosse um médico mais ansioso e perante aquele cenário é provável que tivesse recorrido a uma cesariana. Nova introdução do cateter passava já das 23h e o meu corpo de imediato começou a responder. Depois da 1h de dia 3 de Outubro, fomos para a sala de partos fazer força todos juntos, como disse o obstetra. E, em menos de dez minutos, guiada por umas mãos sábias na minha barriga e pela ajuda o médico, a Ema chegou ao mundo a chorar. Foi uma longa e difícil viagem. Por isso ela deve ter ficado tão admirada por cá estar.
E talvez também por isso, a semana que se seguiu foi uma das mais exaustivas da minha vida. Um choro sem consolo que fazia confundir o dia com a noite. A Ema chegou a chorar porque tinha bons motivos para isso.
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xi-coração Soninha
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