Nascer é difícil

Ela não parecia querer nascer. Passou bem para lá das 40 semanas e aproximou-se da 41ª. “Que lhe parece induzirmos o parto?”, sugeriu o médico. Eu, que temia descer as escadas do terceiro andar com dores, aceitei.

O grande acontecimento de 2020 ficou marcado para dia 2 de Outubro. Mas a maioria das coisas da vida não acontece por marcação.

Chegámos cedo ao hospital, felizes e bem-dispostos. É claro que levaria epidural e tudo aconteceria de forma tranquila e rápida. De novo, a vida não é assim.

Não encontrámos simpatia nas enfermeiras, que não se deixaram contagiar pela nossa alegria. Primeira desilusão. Fui ligada ao CTG para avaliar o bem-estar do bebé durante todo o processo. Nova desilusão. Apesar de existir uma bola de pilates no quarto, não era possível sentar-me nela, ou caminhar porque o wi fi do CTG não funcionava. Tinha de ficar deitada. Levantei-me uma vez e de imediato entrou uma enfermeira para ralhar porque os movimentos da bebé quase tinham desparecido do aparelho.

Enquanto tudo isto acontecia, sentia uma fome dos diabos que cada vez aumentava mais. E via o Rui comer com prazer o que lhe serviam. Quem me conhece, sabe como lido mal com a fome.

O médico chegou a meio da tarde para rebentar-me as águas. E com isso vieram as primeiras dores. O Rui adivinhava-as ao olhar para o ecrã, que apontava a intensidade que eu exprimia com caretas e queixume. O processo repetia-se: tocávamos a campainha, muito tempo depois, parecia uma eternidade, vinha uma auxiliar, que dizia ir chamar alguém. Vinha a enfermeira que, de novo, de ausentava para ir buscar nova dose de epidural.

A tarde avançou devagar e com ela veio o cansaço. O médico estranhou o facto de não haver novidades. Mas, segundo o CTG, o bebé estava bem, íamos esperar. Chegou o final de tarde e nada. Veio a noite e com ela a angústia. “O bebé já não está bem. O líquido amniótico tem mecónio, as primeiras fezes, e o bebé já não está a gostar”. O CTG continuava bom, iamos esperar. Chorei. Desesperei e muito. Vieram consolar-me.

Com a entrada da noite veio o sono e foi o sono que nos salvou. Porque ao adormecer, deixei cair a mão e com ela caiu o cateter. Acontecera o impensável: o cateter não estava colocado. Ninguém percebera porque estava escondido com um penso. O médico alarmou-se, chamou nova enfermeira, ralhou. O cateter devia conduzir para o meu corpo a oxitocina, necessária para o nascimento, e o soro, necessário para alimentar-nos. A fome tinha um motivo. Incrivelmente, o facto de o trabalho de parto ter parado também.

Fosse um médico mais ansioso e perante aquele cenário é provável que tivesse recorrido a uma cesariana. Nova introdução do cateter passava já das 23h e o meu corpo de imediato começou a responder. Depois da 1h de dia 3 de Outubro, fomos para a sala de partos fazer força todos juntos, como disse o obstetra. E, em menos de dez minutos, guiada por umas mãos sábias na minha barriga e pela ajuda o médico, a Ema chegou ao mundo a chorar. Foi uma longa e difícil viagem. Por isso ela deve ter ficado tão admirada por cá estar.

E talvez também por isso, a semana que se seguiu foi uma das mais exaustivas da minha vida. Um choro sem consolo que fazia confundir o dia com a noite. A Ema chegou a chorar porque tinha bons motivos para isso.


Comentários

...o chegar a este mundo deve ser a experiência mais maravilhosa que o ser humano tem ao longo da vida...é pena não termos memórias desse momento...
xi-coração Soninha
o cateter caiu durante o filme do sherlock holmes no axn e eu sei que a ema resolveu o mistério antes de mim 🔮
Claro, foi por isso que ela se decidiu.
Maravilhosa e assustadora ao mesmo tempo. Beijinho no coração.

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